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Criar um Filho

Criar um filho na década de cinquenta do século XX
por Jorge Lage

Havia todo um ritual com os filhos

Falar sobre o meu passado e dos meninos da minha aldeia, a sessenta anos de memória ou mais, para quem se encontra pelos setenta, não é tarefa fácil, exigindo muita concentração e algumas consultas aos meus irmãos vivos, cuja memória é diferente da minha, porventura menos extensa.
Em criança, quando via passar à minha porta uma mulher prenhada e já andava muito devagar ou via movimentos apressados da «Julha» do Fena, parteira da aldeia, por «reforma» da Tia Antónia do Xico Maria, para alguma casa ou casebre era certo que ia parir. Os garotos iam todos para a rua ou para casa de alguma vizinha, porque aquilo era obra de mulheres. Com bacias de água quente e rezas pelo meio lá vinha a notícia de mais um raparigo e que era beijado por toda a família, como se fosse o «bilhete» para fazer parte do clã.
Nunca me lembro de vir algum médico à aldeia por uma situação mais complicada. Não havia dinheiro para esses luxos e prosmeirices e só de barca lá chegaria. A parteira da aldeia resolvia. Depois, no baptizado, era, geralmente, a parteira que tinha a honra de levar o raparigo à pia.
A morte do Maximino «Piqueno» foi dos episódios mais longínquos que retenho. Era um mendigo, que pernoitava na loije de animais, do Xico Maria Mateus, na «rua de Baixo» e nas costas da casa da Ferreira e do Júlio, quem sai da Igreja, pela porta principal, à direita. Curioso é lembrar-me do episódio em que ele ia a passar à minha porta, numa tarde soalheira de Outono ou Primavera, e eu estava sentado ao fundo das escadas, com as minhas irmãs e a Ana Maria. O mendigo passou de taleigo das esmolas e haveres às costas e, já a uma distância de 10 ou 15 metros, a Ana Maria dispara a nomeada mais desprezível: 
- Oh! Maximino Piolhoso! Oh! Maximino Piolhoso!
O mendigo volta-se para trás como uma mola em brasa e ameaçadora. Devo ter ficado sem respiração. Mas, o Maximino Piqueno tinha identificado bem a agressora e como um cão danado atira-se a ela, que sentada estava e sentada ficou e ligou a «sirene» a todo o gás. Enquanto o mendigo raivoso repetia: 
- Toma lá o Maximino Pilhoso!
Foram três ou quatro vezes que a Ana Maria levou com o saco das esmolas e dos haveres pela cabeça abaixo. O mendigo retira-se e segue o seu caminho. As minhas irmãs disseram-lhe:
- Foi bem-feita! Não tinhas nada de chamar nomes ao «probe» que ia na vida dele.
Recordo-me da cena, mas não me recordo do seu rosto, tal é o tempo recuado da minha memória. Como me recordo do cair de tarde em que este «probe» morreu na loije dos machos. Devia ter eu três ou quatro anos, porque só chegava à entrada da porta e recuava para trás com os maiores. Alguns éramos muito pequenos, quando íamos para ver o «probe» a morrer ou já morto. Voltávamos para trás com os maiores, que já recuavam em passo bem ligeiro e amedrontados com o espectro da morte na penumbra da loije.
Assim, a minha memória de criança, recua aos meus três ou quatro anos.
Dos primeiros anos de vida, lembro-me do hábito de aconchegar uma das mãozitas no peito da minha mãe. E a vontade ou aconchego que sentia era tanto que o normal era ter uma mãozita junto ao peito. O meu pai contrapunha que andava lá uma lagartixa e eu, assustado, retirava logo a mão.
Um dia, com o meu pai vencido pelo sono, suplico:
- Oh Mãe! Deixa-me meter a mão no teu peito, que ele agora está com os «cornos» ferrulhados e não «bê»!
Este meu duro e inocente desejo fazia parte do rol de ditos que a minha Mãe avivava, de quando em vez, com risota.
Os anos da década de trinta a cinquenta eram duros para mães e filhos, principalmente se eram os primeiros e não havia pessoa idosa para ficar com eles. As crianças ficavam a dormir no «gaiolo» ou no berço de madeira com algum xaile ou manta velha a tapá-los, enquanto as mães saíam de madrugada para a faina do campo, ganhar a vida. O terceiro ou quarto filho, com três, quatro ou cinco anos tinha de tomar conta dos mais novos e quando as mães regressavam estava tudo com fome e cheios de gaitar.
Sei que dos momentos mais duros que a minha mãe teve de enfrentar, para além dos tempos de racionamento, durante a Guerra Civil Espanhola e da Segunda Grande Guerra, era quando ia para o campo trabalhar e tinha de deixar os dois primeiros filhos sozinhos em casa. Falava-me na cena dolorosa quando, no Inverno, lhes apagava o lume. Desatavam as crianças num berreiro, que lhe sangrava a alma. A dor acompanhou-a pela vida fora. Dizia-me que apagava o lume para evitar que se queimassem ou provocassem algum incêndio. Depois, deixava-os envoltos num xaile velho, fechados na cozinha, que apenas tinha como luz a que passava pela telha-vã e por duas ou três telhas de vidro.
Eu, como benjamim do rebanho, fui um privilegiado, porque a minha irmã mais velha tomava conta de mim. E até tinham autorização de me trazer para o recanto soalheiro do sol poente, ao fundo das escadas da casa paterna.
Nesse tempo, deixavam-se as crianças com um, dois ou três anos fechadas em casa a dormir. Por vezes, pedia-se a alguma vizinha (os homens não tomavam conta dos raparigos) que não saísse para o campo para ir escutar o raparigo.

Comentários

  1. Caro amigo, Fernando! Já não me lembrava deste texto. A sua leitura humedeceu-me as fontes da alma. Abraço amigo.

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