As sardinheiras da Torre de Dona ChamaNetBila'News Avançar para o conteúdo principal

As sardinheiras da Torre de Dona Chama

Torre de Dona Chama, concelho de Mirandela

Jorge Lage

Torre de Dona Chama, Mirandela
Torre de Dona Chama, Mirandela

As sardinheiras eram um grupo de pessoas pobres que, num Portugal rural e com muito pouca mão-de-obra assalariada, tentava conseguir o sustento para a sua casa e fintar a morte pela fome. Contudo, as lavradeiras pequenas e remediadas ao verem-lhe fazer negócio, lançavam para o ar o dito: «a sardinheira vende sardinha e come galinha».
Inicio esta memória deste comércio móvel rural pela Torre de Dona Chama por ter conseguido os dados com facilidade.
Ao arrolar a enumeração dos que se dedicavam à venda da sardinha cabeçuda, da escochuda ou escochada (sem cabeça) e do chicharro, à volta dos anos cinquenta, temos um rol de sardinheiras e sardinheiros: a Tia Lucília, o Ti Carlos Costa Polimenta, a Tia Maria Gucha, a Tia Marquinhas Guerra, o Ti Tavares e a Ti Maria Calhelhos.
A escochuda era vendida mais no tempo quente, porque ao sair-lhe a cabeça vinham as vísceras agarradas e conservava-se mais tempo. A sardinha cabeçuda era mais vendida no tempo frio por o peixe se conservar melhor devido às baixas temperaturas.
A sardinha chegava, alta madrugada, de Matosinhos, vencendo as arrastadas curvas do Marão, vinda de caminheta por Mirandela, porque a meados do século XX, já havia estrada por Mascarenhas. Era trazida, em caixas com sal, pela Margarida (do peixe) Cardoso (de Mirandela e esposa do Cardoso – em segundas núpcias) e tinha o Porfírio de empregado. Na Torre recebia-a e distribuía-a o Manuel Guerra, albardeiro de profissão, a quem as sardinheiras já tinham encomendado, previamente, uma ou mais caixas.
Cada caixa paralelepipédica, de tábua fina de pinho, pesava, cheia de sardinha, cerca de 25 quilos, contando com as "taubas" do caixote, a sardinha acamada e o sal grosso para a conservar. A camada da sardinha de cima da caixa era a maior, mais brilhosa e vistosa e chamada sardinha de capa. Por isso, só se tiravam as "taubas" de cima da caixa à medida que se gastava a que estava à vista, até ao fundo. Ia-se arrancando mais uma tábua para escoar mais uma porção e quando ficava a meio ou pouco mais já se não arrancavam mais e ia-se tirando, aos pares e com arte. As "taubas" despregadas eram aproveitadas e voltavam ao distribuidor com a caixa vazia.
Mas o pregão acabava por ser um desafio e uma provocação: – quem compra a sardinha fresquinha!... Ou ainda, o grito apelativo que carregava todos os sonhos e ilusões de um dia de labuta: – ou squinha biba! Depois, as lavradeiras vigiavam-se umas às outras e se uma comprava as outras também tinham de comprar, para não se ficarem a trás. Quando o não faziam, por não puderem ou por serem avarentas ou miseráveis de espírito, tinham que engendrar uma desculpa esfarrapada.
As sardinheiras vendiam-na logo de manhãzinha, com as caixas à cabeça, andando de porta em porta na Torre e, no final, quando não escoavam tudo iam pôr as caixotas no passeio do Zézinho (José Gonçalves), para as acabarem de vender, junto ao Largo da Praça (hoje adulterado para Largo da Berroa, com desrespeito pela tradição).
Isto as que se ficavam pela corda da Torre, porque outras iam mais longe. A Tia Maria Calhelhos ia mais para os Vilares. Mas, havia as que iam de terra em terra, pelas aldeias vizinhas, chegando a percorrer uma distância de 20 e 30 quilómetros para vender toda a sardinha, até Vale de Gouvinhas (Mirandela), Murçós (Macedo de Cavaleiros), Rebordelo, Edrosa e Zoio (Vinhais). 
De Rebordelo costumava vir buscar uma caixa o Augusto Canário que a alombava para vender na sua terra. O Canário (de Rebordelo) prosperou e estabeleceu-se como comerciante bem sucedido.
A sardinha era comprada ao cento pelas sardinheiras e a venda tinha por base o quarteirão, contando-se aos pares. O quarteirão eram «doze pares e ó bicho». Se a lavradeira só queria meio quarteirão, saía rafado, porque só levava seis pares. Alguma mais pobre só comprava um quarto de quarteirão ou três pares. Os chicharros eram vendidos à unidade ou aos pares e cada par custava uns 2$50 (dois mil réis e quinhentos, ou cinco crôas).
Normalmente, a sardinha era vendida a dinheiro ou trocada por grão de pão moído pelo António Moleiro, no Moinho (entre os Vilares e a Torre). As lavradeiras e as jeireiras eram recetivas às aflições das sardinheiras e compravam mais do que precisavam. Era vulgar a Ti Maria Calhelhos, pedir à mãe da Celeste Pires:
– Fique-me lá com este restinho por um litro de pão para os meus filhos! 
Nas zonas serranas ou de montanha, vivia-se com mais fartura, trocava-se muita sardinha por pão da serra, ganhando as sardinheiras pelo peixe e pelo grão.
Nessa altura, as sardinhas eram rijadas (e as batatas). (Não se perdia a "guerdura" nas brasas) e aos carapaus faziam-lhe um delicioso molho de escabeche para se conservarem por uns dias, na mosqueira ou na gaveta, numa travessa ou prato fundo de "gemalte". O chicharro era cortado às postas e rijava-se, também. Cada sardinha avantajada dava para dois garotos e nas casas dos pobres dava para três. A mim tocava-me sempre do lado do rabo porque detestava a cabeça do peixe.
Nos dias de feira, a 5 e 17 de cada mês, havia para venda "pôlbaro" seco ou de meia-cura em cestos de cana abarricados. Na feira dos 17, antes do Natal, comprava-se o "pôlbaro" e punha-se de molho para o dia 24 de Dezembro.
Havia duas feiras francas ou anuais, a dos Santos, a 5 de Novembro e a dos Reis a 5 de Janeiro. O Largo do Toural era dos mais belos do Norte de Portugal e que começou a ser destruído nos anos sessenta, sendo ocupado com algumas casas.
O peixe dos pobres era o bacalhau, que se comia frito ou guisado com batatas, principalmente nas grandes fainas agrícolas, como a segada, a vindima ou a vareja (da azeitona). Guardava-se na adega ou no sótão ("loije" térrea e fresca em que se guardava o fumeiro, as carnes e os queijos curados). Era frequente cortar-se uma racha de bacalhau para merendar, beber um copo ou fazer uma refeição de seco.
O "côngaro" comia-se pouco em Terras da Torre. Quando o havia, num dia de nomeada, a Tia Maria Calhelhos que era gaga, anunciava com pregão:
– Quem compra a c(...)a fresca?!... (leia-se: quem compra o "côngaro" fresco?!..).
Na Torre, merece referência o João (Baptista) Miranda, filho da Tia Rosa Sacas, esta a primeira distribuidora de sardinha que a vendia às regateiras. O João Miranda começou como sardinheiro, vendendo até Espanha e na volta trazia minério no burro. Teve na Torre a primeira caminheta e uma fortuna. Seguiu-se o Américo Dias e depois a Margarida (do peixe).

Neste trabalho etnográfico e memorial sobre a Torre de Dona Chama, tomo como referência os anos cinquenta e sessenta do século XX e tive a ajuda da Celeste Pires (Vilares da Torre) e do Ti Octávio Andrade (Torre).

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Encontro com Delfim da Silva Monteiro, nas Paredes

Número de telefone para contactar o Sr. Delfim: 969179420 No lugar das Paredes, freguesia de S. Lourenço de Ribapinhão, o encontro espontâneo com Delfim da Silva Monteiro que, em tempos, me contou a lenda de Nossa Senhora das Candeias. Neste vídeo, em linguagem simples, muito expressiva, refere as curas que consegue a quem o procura, através da invocação de Nossa Senhora da Saúde!

Lenda da Nossa Senhora das Candeias

Paredes, freguesia de S. Lourenço de Ribapinhão Numa bela noite, 2 de fevereiro, ia um caminheiro com os seus dois cavalos carregados, que ficaram atolados naquele histórico atoleiro. Era homem de boas ideias. Pediu à Senhora das Candeias, foi ouvido e Nossa Senhora apareceu com uma candeia na mão; alumiou-o e seus cavalos desenterrou, acompanhando-o à povoação (Paredes). - Está visto que o homem tinha bom coração; diz o contador desta história - Delfim da Silva Monteiro - natural e residente naquele lugar. Era uma noite rigorosa com muita chuva e neve que apanhou desprevenido o almocreve. Nossa Senhora a esse homem disse que nada dissesse, mas ele não pôde resistir ao que viu. Foi um Milagre!  Cheio de alegria no seu coração, logo transmitiu e espalhou pela povoação. Toda a gente correu para as fragas daquele lugar, hoje conhecidas por Fragas de Nossa Senhora das Candeias, lindo lugar, digno de se visitar! - Desde esse tempo, a Senhora das Candeias das Paredes foi sem

Quadras populares a S. Gonçalo de Amarante

Quadras populares a S. Gonçalo de Amarante in «Aveiro do Vouga ao Buçaco» Enviado por Jorge Lage (…) Foguetes em S. Gonçalo Há festa na beira-mar! As velhas cantam de galo… Nunca é tarde p’ra casar! (…) S. Gonçalo, meu Santinho, Como tu não há nenhum! Arranja-me um maridinho Para quebrar o jejum… (…) Meu santinho, desespero, Repara na minha idade! Por favor, eu também quero O que quer a mocidade (Amadeu de Sousa – poeta popular) (…) S. Gonçalo de Amarante, Casamenteiro das velhas, Por que não casais as novas? Que mal vos fizeram elas? (…) Hás-de saltar as fogueiras À noite no arraial, Dançar com velhas gaiteiras Uma dança divinal. (João Gaspar) Quadras populares a S. Gonçalo de Amarante in «Aveiro do Vouga ao Buçaco», de Amaro Neves e outros. As festas e romarias fazem parte das festas cíclicas anuais e são precisas para a alma do povo como de pão para a boca. O povo tem remédio para tudo na Bíblia e nas tradições e saberes orais. Há santos, rezas, mezinhas e produtos do campo para tod