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Pela Ladeira do Arrebentão

Pela Ladeira do Arrebentão
por Jorge Lage


Linguagem popular

Este conto foi escrito com inobservância do (des)acordo ortográfico, empregando linguagem popular. É ficcionado, apesar dos nomes das pessoas parecerem reais.
Jorge Lage

A junta de bois mirandeses pareciam dois castelos. Eram novos, mas quase cerrados e como duas estampas. Bons de mãos e de patas e nunca se negavam ao carro ou à charrua. Foi na «Feira dos Santos da Torre» que foram adquiridos a um lavrador serrano e por preço em conta. O «Marelo» tinha uma pelagem fina quase toda amarelada, puxava à mão-esquerda e tinha um olhar mais vivo e mexido. Sendo eu criança tinha-me azar, sem eu saber porquê. Nunca perdia a ocasião de agitar a galhada na minha direcção e o meu «respeito» e medo eram muitos e constantes. O mais escuro, amarelo-acastanhado, o «Castanho», mais calmo e olhar pachorrento, aceitava-me embora eu mantivesse sempre uma distância de grande respeito.
Decorria o mês de Março em que havia as últimas lavouras da decrua ou as primeiras da entravessa para fecundarem o pão no tempo das sementeiras. Mas, o Março é o Março e sempre pode semear uma desgraça. O calor e o cansaço depois de um dia de entravessa os «beis» tiveram a recompensa de se fartarem na mimosa erva do lameiro do Fojo. Depois do estômago aconchegado, o Marelo deitou-se a remoer a vida no terrão húmido e frio. Uma tragédia! No dia seguinte o Marelo estava murcho. O molho de ferrã posto á frente, ao almoço, foi quase todo para o Castanho. Enquanto o Manel se acomodava com um caldo de garabanços, a Quitéria lançou um olhar aos «beis», como se fossem mais dois filhos.

Pelo menos, eram um dos pilares duma boa casa de lavoura.
– Mou filho, o Marelo não está bô! O que terá!?
– Já tinha reparado que se arrasta mais ao birar o rego. E pouco comeu… – explicou-lhe o Manel.
– Não o piques muito, porque pode ter algum mal.
O resto do dia lá se aguentou a chambeliar as patas e todo enfiado. No tempo que passou no lameiro apenas debicou um pouco a erva tenra. À hora de regressar a casa a Quitéria já estava no tanque preocupada. Ao ver a junta e a cara sombria e relada do filho confirmava as maleitas do melhor «bei». Ficou com a alma aos pés!
– Está repessado! Temos uma desgraça! Vou-lhe buscar uma copa de farinha para ver se melhora.
O Marelo, deitado na loije, deu umas enfastiadas lambedelas no masseirão e o resto ficou.
O Eugenho chegara, da feira dos vinte e cinco, já tardego, e ouviu um silêncio sepulcral junto à lareira. A Quitéria transbordou as nuvens negras da cara:
– Estamos desgraçados Eugenho! O bei Marelo está doente! Devem-lhe ter feito mal. Alguém nos rogou alguma praga ou deitaram-lhe o mau-olhado.
Com a calma deste mundo e do outro, remoeu as palavras e soltou-as:
– Está agora doente!... Probable debe estar cansado.
– Amanhã não pode trabalhar – disse a Quitéria. Que desgracia!… – O nosso melhor bei está doente. Deve ter sido imbêja de alguma malbada. O diabo já nos aleijou há deis anos o reco que compramos à tua Mãe!
A cêa mal foi engolida e em silêncio martelava os ouvidos e a alma.
– Bou á Julha do Tonho para que lhe reze.
Subiu-lhe as toscas escadas de pedra, bateu-lhe no postigo e a meia voz chamou:
– Óh Julha! Já ceasteis? Estavam deitados a contar as estrelas pelos buracos das toscas telhas.
– Deus, Nó’Senhor nos dê boas-noutes!
– Boas-noutes nos deia Nó’Snhor! – replicou a Júlia, que além das rezas também fazia os partos das mulheres do povo, depois da Tia Antonha do Chico Maria se reformar de parteira da aldeia devido à velhice. Mas, disse-lhe ao que ia e não tardou a chegarem ao cabanal e à loije da cria.
Depois de dizer as rezas virou-se para o compadre que esteve sempre em silêncio, e disse:
– Não me parece que alguém lhe tanha feito mal. Pode ser algum resfriado por o animal estar suado e apanhar o banto frio da serra da Senábria ou de Nogueira.
Na madrugada seguinte o animal estava abatido e trespassado.
– Não é mais mal chamar cá o beternairo.
– Qual baternairo mou Pai! Pedimos ao Ferrador de Balsalgueiro que mande cá o Flandório, que tem salvado muita cria. Sabe tanto ou mais qu’os baternairos.
A Mãe concordou. Albarda no lombo da égua e não tardou a escapulir-se no Calvário de Cima. Passou por três rebanhos acancelados: o do Capitão, nos Pinheiros, o do meu tio, Antónho Zé, na Moreira e o do Corrêa no Garrancho. As canhonas, no bardo, ruminavam os magros alvores do dia à espera da ordenha e os cães do gado ladravam a demarcar o terreno. A égua foi a trote e a galope, não passaram muito mais de duas horas e o Flandório já estava no cabanal.
– Ó Senhor Eugenho, este é úm boi como uma estrela e o melhor! Está mal!
O Flandório correu com as mãos enormes o boi, dos queixos ao rabo, e não apalpou nenhum inchaço ou até alguma bolarda. Em plena década de cinquenta do séc. XX, limitou-se a receitar-lhe enfarnadas aquecidas e não o deixar sair da loije. 
Voltou no dia seguinte e o animal já se mexia com dificuldade. 
Depois de uns instantes em silêncio sentenciou:
– Senhor Eugenho é melhor pedir para abater o animal na bila, para não se perder tudo. Se salvar vai ficar aleijado.
– Que desgraçia!... – gemeu o Manel com o semblante consumido.
– Como faço a entravessa e levo os carros de estrume para a cortinha?
– Temos que pôr o Castanho a puxar só à charrua.
– Mou Pai, ele não sabe lavrar sozinho – atalhou o Manel.
– Vai andar alguém diante dele e lá se habitua!


in "Antologia de Autores Trasmontanos e Alto-durienses e da Beira Trasmontana"

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