Escalheiro ou Arrascalheiro
Transformação dos espinhos em sumarentas pêras
Em pleno
Parque Natural do Alvão, na margem esquerda do rio Olo, a uns 1500 a 2000 metros
a montante das Fisgas de Ermelo, encontra-se a Bouça da Diabólica, assim lhe
chamava o seu proprietário, meu saudoso amigo Joaquim Dinis, natural destes
montes, concretamente do lugar do Barreiro. Apesar do verão tórrido que tinha
feito sentir-se em todo o país nesse ano de 2013, ali, na Bouça, o tempo era e é
outro e corre de um modo diferente daquele que entendemos como normal. Para os
mais friorentos, mesmo neste dia, 22 de agosto, uma camisolita ou jaqueta
ajudaria ao conforto das costas, não inibindo, no entanto, um espirro ou outro
dando conta da frescura daquele sítio de vegetação luxuriante e tons verdes
carregados, retirando protagonismo à casinha da mesma cor que nos prestou o
apoio necessário para a experiência de um dia diferente mas muito bem
preenchido, nessa varanda natural sobre o rio a percorrer de sons em número
infinito onde colhemos, assim nos concentremos e saibamos filtrar as
musicalidades que a cada um de nós mais inspira. À volta deste cantarolar, em
direção às quedas das Fisgas, os carvalhos são imponentes, altos, adultos, às
centenas. Marcam a personalidade do lugar e condicionam os pensamentos de quem
os observa. Contudo, em menor número, lá aparecem os castanheiros, os freixos,
os abetos ou vidoeiros, os salgueiros e os amieiros. Também a vegetação rasteira
de urzes e outras compõem este quadro idílico, simultaneamente verdadeiro e
único.
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Parque Natural do Alvão: Açureira, Mondim de Basto |
De pedra em pedra, atravessa-se para a outra margem, menos
acidentada, com caminho para a Açureira, terra de colheitas e do feno que
atirará por terra os mais incautos se cortado rente ao chão de leve inclinação.
Naqueles rebos entremeados nas águas, por elas desgastados e arredondados,
autênticas camas de frescura ali se oferecem a quem quiser recostar-se e
descansar um pouco. Das palavras soltas do pastor e do filho de 15 anos já
experimentado nas lides, que connosco permaneceram uns bons três quartos de
hora, comendo, bebendo, transmitindo saberes, deduzimos que as cabras prenhes,
ocasionalmente, aproveitam a frescura do ar e o sopro humedecido da brisa para,
ali mesmo, parirem. Os berros de parto são abafados pelo som da água corrente,
proporcionando à fêmea momentos de profunda intimidade com a cria que lhe rasga
as entranhas, amaciando-lhe a dor.
– E depois? - Perguntámos.
–
Depois, levamo-la ao colo – respondeu simplesmente.
A rudez patente
na singularidade deste habitat está bem espelhada no Escalheiro, popularmente
designado por Arrascalheiro – árvore espontânea de pequeno porte com
características essencialmente espinhosas e outras que lhe dão um estatuto de
forte respeito por parte das pessoas e animais que com ela convivem. Os
pescadores da truta habituados ao uso de utensílios rudimentares da natureza
sabem bem da importância dos seus espinhos que, agilmente aplicados ao corte
longitudinal de uma rolha de cortiça, origina a boia ideal para o ludíbrio do
orgulhoso peixe existente nos rios e riachos destas paragens. Tais como as
pedras do Olo e a sua modelação pelas infindas águas, também a aspereza do
Escalheiro facilmente se transforma enxertando-o, transformando os seus espinhos
em sumarentas pêras.
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