João Manuel Gomes «Borda», de Cabeda
por José Ribeiro
O «Borda» era a alcunha de um senhor de Cabeda dos finais do século XIX,
princípios do século XX, que tinha um grande carisma, pelo que me contam os
mais velhos que ainda o conheceram, carisma que lhe provinha do refinado humor
que cultivava nas relações sociais na aldeia.
Não se sabe bem donde teria origem esta alcunha de «Borda», mas este senhor,
de seu nome João Manuel Gomes, ainda era parente da minha avó paterna, Jesuína
Pereira de Carvalho Gomes de Sousa. Remediado, nunca largava o seu
cachimbo e tinha uma boa casa no centro da aldeia. Gostava de se transportar
na sua mulinha e ia com frequência para a vizinha povoação, sede da freguesia,
Vilar de Maçada, aonde, pelos vistos, teria bons amigos.
A casa do João Gomes, como muitas casas da aldeia, tinha uma ampla varanda
aberta que dava para a rua, perto do largo central da povoação, o Largo do
Olival. Seu pai, Luís Gomes, tinha por hábito fazer a matança do porco lá para
os finais de janeiro, princípios de fevereiro, bem mais tarde que o costumeiro
nestas terras transmontanas e durienses, onde a época tradicional desta
prática é por Novembro ou Dezembro. E também tinha por hábito fazer a
respetiva desfeita do «reco» nessa referida varanda aberta, e aberta para uma
rua aonde passava toda a gente, tornando esse ritual um espetáculo público. E
estes rituais das «desfeitas» do porco são realizados num certo espírito de
festa, em que nunca se abdica de se ir provando, ali mesmo ao lado, os
apetitosos rojões da desfeita e as não menos deliciosas «assaduras», ou seja
as febras na brasa, a abrir o apetite a quem passava. Apetite esse redobrado
pela época em que a cena decorria, quando toda a gente já o não
fazia há meses! O João, ainda rapazinho novo, também pelo que se sabe,
era um dos que mais se entusiasmava com todo aquele espetáculo e, para ajudar
à festa, punha-se na borda da varanda – pode vir daqui a tal alcunha – a tocar
um ruidoso pandeiro e a proclamar bem alto para quem passasse : «quem já comeu
não ouga…», «quem já comeu não ouga», demonstrando logo desde muito jovem
esse seu temperamento um bocadinho provocatório que sempre o caracterizou ao
longo de toda a sua vida. Já adulto e senhor de sua casa, quando passava
alguém da terra pela sua porta, mostrava sempre uma aparente generosidade: «O
vizinho vai com pressa? Oferecia-lhe um copito mas pergunto: já almoçou? » Se
a resposta fosse não, retorquia logo: – «pois é, eu até que lhe dava um
copito ou dois com todo o gosto, mas sabe que em jejum faz muito mal e eu não
quero o seu mal. O melhor é ficar para outra vez…» Se a resposta fosse sim
também tinha resposta apropriada: «bom, se já comeu também por certo já bebeu
e faz-lhe mal beber demais, portanto o melhor é ficar para outra vez…»
Devo dizer que também me foram contando os mais idosos da aldeia que ainda o
conheceram, que o João Gomes «Borda» não era nada avarento ou forreta, como
possa parecer… Estas falsas ofertas de copos eram modos muito próprios dele
para brincar com as situações e usava-as apenas para fazer algum humor. Todos
me dizem que era boa pessoa e muito estimado por toda a gente da aldeia, o que
me conforta, porque, sendo primo da minha avó, afinal de contas também era meu
parente. Quem me deu detalhes para esta pequena crónica foi a sua neta, a
minha parente Maria Gomes Alves. João «Borda» faleceu nos finais dos anos
vinte de uma desastrosa queda em sua casa. Mas deixou na terra uma memória que
perdura e parentes que bem recordam este nosso saudoso João Manuel Gomes
«Borda».
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Cabeda - Largo do Olival |
E já que estamos a referir-nos a parentescos, um dos ícones de Cabeda que é o
seu cruzeiro, logo à entrada da povoação, dedicado ao senhor dos Aflitos,
também está ligado aos Gomes de Cabeda. Este cruzeiro deve-se à iniciativa de António Luíz Gomes de Souza,
ancestral de minha avó paterna e de todos os Gomes de Cabeda, que, tendo
sido militar no tempo das invasões francesas do início do século XIX, e
não ter ficado morto nem ferido, mandou erigir este cruzeiro, por promessa, em
1820, como ficou registado numa inscrição existente na base deste cruzeiro.
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