A primeira vez que o Nanico ajudou ao reco
O João Nanico, também conhecido pelos que lhe são próximos por Janico, é proveniente de uma família modesta e trabalhadora, com escassos recursos económicos. No entanto, com a agricultura precária que mantêm com umas leiras de montanha lá vão angariando para o dia a dia. O reco, tal como em outros lares da aldeia, é o principal meio de sustento na época de inverno e motivo de festa. Desde pequenote, o Janico acostumou-se à ideia do grito esganiçado do animal que sabia de véspera o fatídico destino.
Serão desnecessárias considerações ou descrições retratando uma realidade que, sendo cultural, não deixa de constituir um modo expedito para dar largas ao prazer da boa comida que resulta das carnes alimentadas com produtos da terra. Deixemo-nos então de repetir fórmulas largamente experimentadas por verdadeiros e conceituados descritores dos modos de viver destas gentes como as que habitam perto da família do Janico. Este lembra-se ainda da primeira vez que ajudou à "matança". Empinado, do género estilo bombástico, com as mangas previamente arregaçadas, dava bem aquele ar de quem não tem medo de nada, mesmo do animal que se esfolava permanentemente contra as paredes da estrebaria, deixando transparecer a sua pujança física. Além do João, um grupo de quatro homens empurravam e puxavam-lhe pelas orelhas em direção à faca e ao alguidar. Batatas cruas, fruta podre, restos de comida, labrestos, e sem o esforço do trabalho, pensava o Janico, dão genica ao "filho da mãe" do reco.
O emproamento do rapazelho durou pouco tempo. Doze ou treze arrobas de carne, ainda por cima com quatro patas, não era coisa fácil.
“Xua-xua” - dizia para o animal a mãe do rapaz, como se este a ouvisse tal era a gritaria. De qualquer modo as duas folhas de couve que arrastava pelo chão, mesmo em frente ao focinho, era um gesto necessário e obrigatório para a condução do bicho ao banco inclinado, assim julgava Engrácia do Ressaio que transpirava por quantos poros possuía, ainda o trabalho não começara. Como era a primeira vez, o Janico ficou-se pela parte de trás, o rabo, destinado aos maçaricos. O pai, o da faca, observava atentamente todos os movimentos e preparava a laçada com a corda que havia de atar as ventas a uma das tábuas do banco onde já o reco esperneava. Uma certa dose de vaidade transparecia do seu rosto. A lâmina reluzente aponta de mão firme e conhecedora do ponto onde penetrará vagarosamente a sentença mortal…
Entretanto, já a empreitada vai a meio, percebe-se o cheiro a pêlo queimado e as unhas estão prontas a serem desapegadas. De repente, o Nanico sente no bolso a quentura inesperada e, agora com uma aragem mais humilde, desabafa:
- P’ró ano já sei…!
Nota: Hoje em dia, algum cuidado com as palavras será necessário, pois estas poderão ferir suscetibilidades como é o caso da palavra "matança". Neste pequeno texto, como sabem os laurentinos e muitos outros, transmontanos, alentejanos e não só, a palavra significa simplesmente o cumprimento de uma tradição que tem a ver com a "matança" do porco e daqueles que da sua carne necessitam como subsistência.
No texto, qualquer semelhança com a realidade é apenas coincidência, concretamente nomes de pessoas e lugares!
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